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18
jan
2021

Reflexões de uma jornalista não praticante

Eu fiz jornalismo por acaso. Em meio a 27 provas pra fazer medicina – eu queria estudar genética, ninguém me explicou que poderia ir pela biologia – eu fiz uma, a última, pra Comunicação – Jornalismo. Como tem que ser: bombei em Medicina e passei em jornalismo. Cansada de cursinho, sem rumo, fui eu pra São Bernardo do Campo, terra do petê, fazer faculdade particular.

Me sentia incompetente. Não passei na USP, a faculdade era particular. O curso de jornalismo tinha os melhores professores. A rotina me exigia sacrifício extremo: acordar 5h00 da manhã para pegar o fretado que me levava, junto com os alunos de uma vizinha faculdade de engenharia ao campus.

Conosco estudavam futuros dentistas, psicólogos. Tinha uma galera que vinha de Santos pra estudar, entre eles o bonitón Dalton Vigh, depois ator da Globo. Na volta, ficávamos à beira da Anchieta esperando o ônibus. Todo dia: Praça Panamericana, marginal pinheiros, três tombos, Anchieta. Inverte e volta. 25 km entre casa e faculdade.

A faculdade de jornalismo

Banca de jornal

Foto: Kat Coffe, Unsplash

Foi naquelas salas, depois do privilégio da escola cinco estrelas em que estudei 2/3 da vida até ali que descobri as rádios livres – também conhecidas como rádios piratas -, Guattari, Deleuze. Foi lá que li tudo do Sartre, fiz vídeos teoricamente “arte”, frequentei o Madame Satã, amei Titãs e The Smith e finalmente fui descobrindo outros horizontes.

O horizonte da Rose Mercatelli, que já tinha 40 anos, dentista, três filhas e estava junto com a gente, perseguindo seu sonho antigo. A mulher que jovem tinha sido presa em Ibiúna, sofrido os desmandos da ditadura e contava tudo pra gente em primeira mão, tanto dentro da sala como fora.

O horizonte da Andréa Pita, a minha primeira colega negra (ai que vergonha). A pessoa não só estava com a gente como fazia Direito na São Francisco. O horizonte do ouvir histórias, do ir a Heliópolis fazer rodas de conversas com as mulheres da favela. O horizonte de ter o primeiro trabalho – e fazer revisão, vender anúncio, entender como funciona uma revista sem nem saber o que é jornalismo direito. Eu vi o plano cruzado ser anunciado pelo bandidão Sarney lá no saguão da faculdade, junto com os colegas. Ouvindo o Reinaldo Azevedo fazer suas considerações ao vivo. Sim, tio Rei estudou ali também.

E assim fui andando na vida, sonâmbula e levada pela corrente. Jornalista? Sim. Mas uma mulher jovem muito imatura, privilegiada, mimada, arrogante, sem a menor noção do mundo. Eu não gosto da jovem que fui. Não sei se gosto da mulher que fui a maior parte da minha vida. E tá tudo bem. Apesar do despreparo, consegui enfrentar a vida.

No caminho, eu comecei a frilar mundo afora. Primeiro sobre moda – mulher “bonita” sabe de moda, né? #sqn. Depois, pequenos textos saídos num jornal de uma livraria. Então mais um degrauzinho. Uma colaboração aqui, outra ali. E a vida foi andando.

Até que, no fim do segundo ano de faculdade consegui um “estágio” na Fundação Padre Anchieta. Eu já tinha sido faz tudo numa pequena revista; já tinha colaborado com alguns outros lugares. Estudava de manhã, mas fazia atendimento ao ouvinte das 18h às 24h. Sim, das seis da tarde à meia noite. Com um diretor nojento, que gritava com todo mundo e odiado. Tinha salário fixo, benefícios, algumas mordomias – como transporte pra voltar pra casa de noite.

A faculdade? A minha matrícula era pra manhã. Eu passei a não conseguir mais. Passei um ano sem aparecer – e os professores me aprovaram… No ano seguinte, passe pra noite, matriculei no que faltava e me formei. Ah, a delícia dos anos 80, pré-constituição atual, antes de todas as regulações e controles.

Pouco depois que me formei (1987), o Brasil ganhou uma nova Constituição, feita sob medida para a liberdade, a cidadania, um futuro melhor. A gente ainda cortaria uns bons maus pedaços até o impeachment do Collor, a ascensão do FHC e um pouco mais de razão – e finalmente, nos livrarmos da inflação, o maior legado da ditadura. Então…

Corta para 14 de janeiro de 2021.

Placa eletrônica: Coronavírus, Previna-se instalada numa bifurcação com duas ruas vazias

Foto: Nathana Rebouças

Caos em Manaus de novo. Gente morrendo nos hospitais e prontos-socorros por falta de oxigênio. Há pouco mais de dois anos, o Brasil é comandado por criminosos. O principal deles deveria ter saído algemado da Câmara dos Deputados por idolatrar torturador, que, diga-se, não foi preso nem condenado por seus crimes. Eu e muitos outros gritando no Twitter. Muito.

Desde março de 2020, o mundo lida com o enigma do vírus e a pandemia. Com mais recursos do que em 1918, o Sars-Cov2 foi reconhecido em tempo recorde – sequenciamento feito por brasileiras, inclusive -; estudado ao máximo e produziram-se mais de 20 tipos de vacinas, com as mais diversas tecnologias, das mais tradicionais às mais inovadoras, em tempo recorde.

A Organização Mundial da Saúde estabeleceu, rapidamente, o que fazer para enfrentar a ameaça: evitar o contágio (uso de máscaras, distanciamento social e lavar muito bem as mãos) e testar os suspeitos. Enquanto isso, no mundo, há um outro vírus circulando: o negacionismo. Gente que nega ciência, educação, vacina. Toda razão será escorraçada com a Bíblia – ou outro livro sagrado qualquer – e as “narrativas”, que são mentiras bem urdidas para atordoar todo mundo.

No Brasil, a circulação de baboseiras, mentiras e tentativas sucessivas de golpe e destruição de tudo o que foi construído pós-ditadura segue firme e forte, espalhando junto com o vírus. Orwell nunca foi tão presente. Passamos de um país com conhecimento e competência para oferecer vacinas, proteção aos nossos ativos ambientais e promoção de políticas públicas eficientes a um pária internacional em dois anos.

Criando mentiras, a rede de intrigas seguiu firme e forte durante 2020, dividindo pessoas, criando ódio. O alvo principal: a mídia. O jornalismo fica sob ataque dos que precisam que ele morra para concretizar seus projetos e cidadãos “bem intencionados” que caem na esparrela da crítica construtiva.

Informação que salva: jornalismo

Qualquer um que saiba fazer uma apuração e escrever ou contar em vídeo não tem como cobrirtudo o que acontece. No meio do caos, brotam pautas. Dos desvios de dinheiro reservado ao enfrentamento da pandemia à realidade das favelas, sobra assunto, faltam mãos, bocas e braços para expor tudo o que existe para ser revelado.

Na pandemia deixou claro o racismo. Na pandemia ficou claro o quanto o real é o único caminho para superar a dificuldade. No Brasil dividido entre razão e ilusão, os jornalistas foram às ruas – e morreram – para garantir o acesso a esse real tão precioso. E foram aprendendo como agir e reagir às tais narrativas.

Nesta profissão há uma regra: nada se inventa. Um jornalista, do mais novinho ao mais premiado, sempre publica o que pode provar, o que foi comprovado por fontes, contado por pessoas que viveram ou mostrado pelos números oficiais. Ele até cria fontes de dados, reunindo informações em repositórios, como o Fogo Cruzado.

O Brasil ficou sem ministro da saúde por quase quatro meses em 2020. De fato, seguimos sem ministro da saúde, porque o cargo é exercido obviamente pelo presidente. O general advoga, como o seu chefe, um “tratamento precoce” que não existe. Milhões de testes venceram num depósito em Guarulhos. Os conselhos de medicina não dão um pio sobre pessoas não qualificadas receitando remédios. Pacientes de lúpus ficaram sem remédio por conta da corrida às farmácias em busca de uma cura que não existe.

Não existe por quê? Porque se existisse de fato, as pessoas não morreriam aos milhares neste dia 15 de janeiro, data em que se alcançou a triste marca de 2 milhões de mortos em todo o planeta.

Enquanto isso, nas redações, profissionais trabalham dobrado com salários cortados. Enfrentam como podem o seu racismo, machismo, preconceitos de toda sorte mais a violência dos seguidores do ditadorzinho “a culpa é dos outros”. Os jornalistas são, desde sempre, os profissionais que mostram o que está acontecendo. Ou, como dizem na sede do império: o primeiro rascunho da história.

Jornalismo: serviços prestados

Foi através de jornalistas que conhecemos os desvios e desmandos do Collor. Foi através de jornalistas que conhecemos os desvios e desmandos de Maluf e Celso Pitta. Foram os jornais e revistas que levantaram as bolas do Mensalão e do Petrolão. Foram jornais, TVs e revistas que mostraram todos os desvios que aconteceram no Rio de Janeiro, no Maranhão, nos cafundós do Brasil.

Da melhor forma, com as melhores práticas, os jornalistas estão na luta para conseguir levar a melhor informação às pessoas. Falharam miseravelmente em 2013? Sim. A imprensa falha? Falha. Muito. Não só em 2013. É erro todo dia, toda hora, a cada minuto. Mas vamos só olhar o agora: imaginem só o estado emocional de um ser humano vendo outros morrendo, sem atendimento e, pra completar, com medo de ser atacado. Isso influencia o desempenho de qualquer um e de todos.

Desconsiderar o lado humano é parte do horror atual. A gente quer perfeição, robotização, que a história encaixe perfeitamente nos nossos valores. Errar não é tão ruim – permite melhorar, aperfeiçoar, fazer melhor. Todo mundo aprendeu a lavar as mãos com a imprensa, que fez muitas matérias sobre isso. Na semana passada, o Fábio Turci deu uma aula de antirracismo no SP1, que viralizou nas redes.

https://youtu.be/WFs6Hu8M92Y?t=2871

Seja na TV, nos jornais, nas revistas, nos sites, há milhares de jornalistas brasileiros trabalhando, 24×7, para levar a melhor informação a todos, em todas as áreas. Política, economia, saúde, ciência, tecnologia, negócios. Todo mundo está trabalhando muito.

Junto com cientistas – destaque para o Instituto Questão de Ciência, com Natália Pasternak à frente, e Agência Bori, da querida Sabine Righetti – os jornalistas têm trabalhado duro para levar a informação de qualidade aos brasileiros.

Enquanto isso, alguns brasileiros desdenham da imprensa (aka “grande mídia” ou Globo Lixo). Deixam de assistir telejornais, de ler jornais que informam corretamente e incentivam meios “alternativos” que circulam sem dó informações falsas e mentirosas.

Nas conversas em redes sociais se vê o resultado: uma parte acha que o assassino em chefe está certo, que a culpa é da imprensa, do STF, do Congresso. A outra briga entre si, apontando o dedo para a imprensa, o Congresso, o STF, os governadores, os prefeitos, os institutos de pesquisa, a Anvisa, etc., etc., etc.

Os brasileiros esquecem, no meio do caos, não só que perdemos mais de 207 mil concidadãos para a COVID-19. Além da subnotificação, que é óbvia quando checamos as informações disponíveis, há ainda os casos gritantes de morticínio pela polícia militar, sumiço de crianças, assassinatos de crianças.

Pode-se criticar a imprensa por não conseguir nomear corretamente os acontecimentos? SIM. Mulheres assassinadas por homens; crianças assassinadas pela polícia; juízes e tribunais promovendo desmandos impunemente. Há uma longa lista de fatos não nomeados acuradamente.

Lembrem: jornalistas são pessoas. Seres humanos como todos nós, sujeitos às próprias emoções. Se os cidadãos estão com medo – e devem ter mesmo, pois temos um governo federal que não cria políticas públicas, que trabalha para acobertar crimes de seus integrantes e não quer saber de trabalho em meio a uma pandemia -, porque os jornalistas não teriam?

O medo é, das emoções, a mais profunda, tão forte quanto o amor. Ontem, depois de muito ver sobre o caos em Manaus, eu chorava. Chorava porque não tem mais esperança. Chorava porque tenho uma consciência de que é só o começo do caos. Não há como impedir que as variantes e mutações aconteçam, não só por lá, mas também no resto do Brasil.

A racional desta afirmação é a evolução: quanto mais o vírus fica à solta, mais ele evolui. Sim, ele melhora a sua eficácia. Graças à paralisia federal, não temos vacinas para todo o país – a única cura e prevenção possível. E, no caso em questão, é óbvio: ou cuida de todo mundo ou não resolve a questão. Todo mundo, ou a grande maioria, deveria estar no mesmo barco, remando na mesma direção.

E a realidade não é essa, infelizmente. E caberá aos jornalistas e cidadãos que estão com os pés bem fincados no real evitar o grande desastre. Nomear corretamente; buscar parar a circulação da mentira, da ilusão; conseguir mobilizar instituições e autoridades para a defesa de vidas. E só com a verdade isso será possível.

E então, veio 17 de janeiro

A reunião da Anvisa para a aprovação emergencial das vacinas do Instituto Butantan e da Fiocruz foi transmitida ao vivo para todo o Brasil. Acabou a graça de dizer que tem como prevenir COVID. As vacinas foram aprovadas de forma emergencial. As escaramuças políticas começaram – e renderam risadas, sorrisos, memes.

Finalmente um raio de esperança. Se a história não acabou, o post fica por aqui. Lembrem: pessoas são construções complexas. Não são só conhecimento, história, privilégios (ou a sua falta). São emoções, sentimentos, estados de espírito e crenças. Tudo importa. Tudo. Principalmente em jornalismo em que a matéria-prima é gente para encontrar e organizar os fatos.

 

Fotos:

Previna-se, Nathana Rebouças on Unsplash

Banca de Jornal: Kat Coffe on Unsplash

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