Quando era criança, o roteiro das férias era pré-programado. Em janeiro/fevereiro, íamos para o Guarujá. Em julho, fazenda em Mato Grosso (do Sul, que apareceu quando eu já era crescida). As duas propriedades eram do meu avô Annibal, pai da minha mãe.
Homem duro-meigo, que apanhou muito na vida, vô Annibal era miúdo (acho que tinha no máximo 1,60m) e muito doce com quem amava. Cheio de histórias (participou da Revolução de 32, em São Paulo), engenheiro civil que virou fazendeiro, ele me ensinou muitas coisas.
A fazenda de Mato Grosso do Sul se chamava Uirapuru. Era o último lote (com 9 mil hectares!!!) da herança do pai dele, meu bisavô. Era lá que ele criava gado. E fazia o dinheiro que sustentou (e socorreu) a família inteira. Antes dela haviam outras duas, que eram das suas irmãs, a Tia Ita e a Tia Maria, minhas tias avós. Entre Campo Grande e a sede da fazenda eram várias horas no retão de terra vermelha e depois morro abaixo para chegar à Uirapuru, depois de muito abre e fecha porteira…
Para eu e meus irmãos, crianças, era pura diversão. Anos 70, andávamos na caçamba da caminhonete (nem pensar que caberia uma família de 5 ou 6 na cabine), descíamos e subíamos para abrir. Víamos emas, pequenos grupos de lobos guará (que depois sumiram). Lembro também de uma vez que tive medo porque havia soldados com rifles na estrada – e os caras pararam a gente… [menina ainda, nem tinha noção do tamanho das atrocidades que a ditadura cometia em nosso país, mas já tinha medo de soldado e polícia, prova de que crianças sabem bem o que acontece à sua volta].
A gente ia pro campo com os peões (quando havia sela e se a gente não ajudasse no trabalho), aprendíamos que era preciso vacinar o gado, como tratar os bernes (bicho nojento, argh), a marcar os bezerros. Descobríamos matas e seus sons, víamos grupos de araras azuis e vermelhas rasgando o céu azul. Aprendemos a usar o pilão, a catar frutas no pé (goiaba, manga, laranjas cercavam o terreno). Caçamos aranhas em suas tocas. Vimos vovô matar a cobra a paulada, literalmente. E passamos tardes lindas na varanda da casa de pau a pique vendo o sol mergulhar atrás do morrinho onde pegávamos pedações de rocha de quartzo bruta…
Esses dias no campo, com avô, avó, comidas feitas em casa e sem eletricidade (tínhamos só um pouco de luz elétrica à noite, graças a um gerador movido a diesel, cujo uso era racionadíssimo por conta do preço do combustível) foram a semente da mulher que cuida do meio ambiente hoje.
Meu avô nunca deixou acontecer caça na fazenda. Nas matas havia catetos, quatis, emas, tamanduás, “lobinhos” (como chamavam os guarás), até onça pintada. As pintadas eram as únicas que corriam risco de virar pele, mas só em caso de ataque às vaquinhas – que, afinal, eram o sustento dele e de todos que lá trabalhavam (eram muitas famílias).
Com ele aprendi o gosto das longas caminhadas pelo mato. A olhar as árvores e saber seus nomes. Aprendi que em volta de rios é preciso manter a mata. Que posso ter medo do bicho x ou y (no meu caso sapos, pererecas, cobras), mas não é preciso matar o bicho por conta disso. Foi ele que me ensinou como “cuidar de terra” e fazê-la produzir. Eu vi o controle que ele fazia, à máquina porque sua letra era ininteligível, tanto dos custos como dos ganhos.
Ali, na Uirapuru, aprendi que você colhe o que planta. E que a gente só derruba aroeira porque é a melhor madeira para fazer cerca – sempre tomando cuidado para ter reserva do material na mata. Que tudo tem que ser cuidado, controlado, olhado. Há que considerar os efeitos a longo prazo, sempre. Que a vida pode até ser difícil, com geadas, secas, eventos inesperados, e você enfrenta da melhor maneira, com os recursos que tem.
Eu vi queimadas ao vivo – nos vizinhos – e ouvi que não se coloca fogo à terra para limpar mato. Descobri qual o melhor tipo de capim (já esqueci o nome, claro) e qual o que vira praga e detona a mata. E também que existem agrônomos e veterinários que orientam o que se deve fazer, como e quando.
Ao longo dos muitos anos em que fomos à Uirapuru, vendida em 1989, vi também as terras que beiravam o retão se transformarem conforme o asfalto avançava. Em vez de mata, soja. Quilômetros e quilômetros de soja ocuparam as terras. Cada vez menos buritis. Cada vez o amarelo dos ipês mais espaçado. Os rios expostos, sem nenhuma árvore em suas margens… E a erosão aparecendo a olhos vistos.
Nunca mais voltei ao Mato Grosso do Sul. Não tenho vontade, juro. Não quero ver o “progresso”, a falta de mata, a monocultura. Eu sei do que mudou pelos canais de comunicação tradicionais, pelos primos que ainda estão lá, ainda fazendeiros, tentando tirar sustento da terra.
E também sei que aprendi, naqueles muitos hectares, lições preciosas e muito precisas de como se vive bem sem destruir tudo o que nos cerca, da melhor forma para todos os envolvidos.