Entre outras muitas coisas, também sou síndica. Ontem, quando o interfone começou a tocar por engano, senti o cheiro da encrenca. Hoje cedo, recebi o seguinte e-mail:
Minha síndica querida:
O último dia de maio terminou com muito som!
Acordei com uns ruídos infelizmente já muito conhecidos e relutei em verificar que horas eram, mas não resisti: uma e cinco da madrugada do dia trinta e um de maio.
De onde viria o impulso sonoro? Do sétimo andar? Não, lá é depósito de armações de óculos… à noite não tem ninguém. Do quarto andar? Não, lá é depósito de sapatos… à noite não tem ninguém. Intrigado, abri a porta da entrada do apartamento, desci dois ou três degraus da escada. Tudo vibrava, tudo era som, melodia, harmonia, ritmo.
Como conciliar tudo isto com minha necessidade de dormir? Uma necessidade muito caipira, admito: onde já se viu alguém querer estar dormindo a uma e cinco da madrugada? Nem as galinhas…
O que fazer?
Peguei as cobertas e fui me espichar no sofá da sala. O som continuava.
Tentei o quarto onde trabalho durante o dia (que extravagância!). O som continuava. Pensei em jogar uns almofadões no chão do banheiro e me instalar lá. Mas também lá o som continuava…
Então me ocorreu recorrer às potências celestes. Em primeiro lugar, a Frei Galvão, mas logo caí na real. É santo novo, deve estar muito atarefado e além disto é contra toda e qualquer forma de nepotismo, pois é de opinião que proteger a família dele é coisa que só fica bem para certos políticos nordestinos (descendo de três irmãs do santo…). Então pensei em Nossa Senhora-Desatadora-dos-Nós, mas o departamento dela é outro, só cuida de assuntos ligados à fiação e tecelagem… Como todos sabemos, são os homens que criam os deuses: fiquei imaginando se não existe uma Nossa Senhora-Interruptora-de-Sons. Então eu poderia fazer uma novena. O problema é que teria de rezar durante nove dias, ou melhor, durante nove noites. E se, terminada a novena, o som voltasse? Pior ainda: e se, durante as nove noites da novena, o som não parasse?
Tive outra idéia: vestir-me, descer toda a Melo Alves, em seguida pegar a Atlântica, ir até o fim dela, embicar na Gabriel Monteiro dos Santos e prosseguir até a Faria Lima. Refazer o trajeto. Afinal, estava uma madrugada de lua cheia, quem sabe eu poderia espiá-la entre nuvens. Haveria, porém, dois problemas: primeiro, ser confundido com um lobisomem vagando pelos Jardins em noite enluarada, quem sabe à procura de uma jugular onde cravar os dentes. Segundo: voltar para casa e constatar que o som continuava!
Só então veio a solução. Custou, pois a essa altura já era duas e vinte da madrugada. Hoje irei a todos os lugares fashion da Baixa Augusta, Vila Madalena, Vila Olímpia e Barra Funda me oferecer como DJ. Não faço questão de salário. Qual é meu lucro? Fico criando música ao vivo, não preciso dormir durante a noite (coisa mais antiga!) e quem sabe até conseguirei me divertir!
O som diminuiu. Agora já não é mais de bate-estaca. É de bate-vareta, mas continua chato, chatinho, chatérrimo…
Vinte para as quatro. Finalmente o silêncio, mas não é grande consolo. Perdi definitivamente o sono, vou ficar rolando na cama. Planejamento do dia: levantarei às sete horas, farei um pouco de exercícios de Tai Chi Chuan e após as oito horas, em rigorosa obediência às leis que regem a poluição sonora e em respeito e consideração a meus vizinhos, ligarei meu som e colocarei no último volume, festejando a chegada de junho, um dos três CDs: Com Defeito de Fabricação (o subtítulo, muito adequado, aliás, é A Verborragia Dessa Polimerdia), de Tom Zé, Madeira que Cupim Não Rói, de Antonio Nóbrega, ou a sublime dupla pré-sertaneja Cascatinha e Inhana, vulgo os Sabiás do Sertão. É que sou nacionalista e ODEIO MÚSICA ELETRÔNICA!
Lúcia, queira-me bem.
Carlos-Sexto Andar, seu co-condômino em transe, em trajetória, em trânsito.
Resposta da síndica (que também sindica este blog aqui)
Querido morador do sexto andar…
Quando o meu interfone começou a tocar – por engano – eu intuí confusão. Mas o meu cansaço foi tanto que às 21h30 estava na cama. E, como bem sabes, meu sono é de pedra, graças a Deus.
Peço a sua licença para publicar tua linda carta no meu blog. Que texto maravilhoso! E vou fazer uma cópia e entregá-la ao responsável pela baderna.
Posso mandar uma advertência para este ser humano – e multar da próxima vez. Ai que falta de paciência. Tanta coisa na vida e eu tenho que virar babá de marmanjo no prédio? Ninguém merece.
Esclarecimentos: a baderna não foi provocada pelo apartamento cujas visitas me chamaram por engano, mas sim pelo nosso “ilustre” morador do quinto andar. O ser humano, que é DJ e dono de uma casa noturna (a gente não cita e não linka pra não ajudar nem tomar processo) acha que pode tudo… será que vou ter que contratar advogado?